terça-feira, 11 de outubro de 2011

Leite e Iranianos


Certo dia, Victor queria ler o conto da Chapeuzinho Vermelho. Ele deitou em sua cama, e percebeu que esqueceu o livro no andar inferior de sua casa. Levantou-se, foi até lá descendo calmante e apanhou seu livro. Na hora de subir, percebeu que sua casa tinha 10 andares e ficou irritado, porque quando desceu sonolento, os 10 andares, parecia que só havia um. Resolveu ir até a geladeira e pegar água. Pegou leite.
 Subiu os 10 andares, pelo elevador é claro. Quando chegou no quarto e deitou na cama, não tinha livro nenhum da Chapeuzinho Vermelho lá. Dormiu um pouco, propositalmente, coisa de 30 minutos. Quando acordou e desceu para pegar o livro, só havia um andar. O sono era um anestésico perceptivo maravilhoso e ele percebeu isso. Deu vontade de comer Pringles, e não se nega uma Pringles de maneira alguma. Arrastou-se até o armário e pegou lá a obra de alguns anos de pesquisa em transgênese, comeu mais rápido do que comeria uma maçã.
 Lá ia ele para seu quarto novamente, irritado, afinal o sono não era um analgésico tão duradouro. Foi pelas escadas dessa vez, um elevador que sobe 10 andares dentro de casa acaba com toda a funcionalidade das pernas, ele poderia dormir em pé naquele dia. Ele queria ter dormido de tênis, pra acordar de tênis pelo menos umas das 3 vezes e ter algo pra tirar dos pés.  Nunca subestime o poder de um tênis. Tinha esquecido o livro novamente, mas comeu Pringles e bebeu leite.
 Os olhos não eram capazes de ver aquilo que a perspicaz mente de Victor detectou. Começou com a certeza de que o Leite não queria deixá-lo ler Chapeuzinho Vermelho. Em breve o Leite não deixaria ninguém ler mais nada! Imagine todas as pessoas que acordariam frustradas numa tarde de sábado com o barulho de crianças gritando freneticamente, passarinhos barulhentos, cachorros latindo para os motoboys que ficariam lá parados em suas motos acelerando e fazendo barulho irritante, já que ninguém saberia o número do telefone da pizzaria em primeiro lugar, essas pessoas desesperadas não saberiam dizer qual horas são. Não saberiam ler Pringles, iriam beber leite puro.
 O Leite queria deixar a humanidade mais burra, as evidências estavam no conto da Chapeuzinho Vermelho. Toda sua família bebia leite, menos sua avó, talvez por isso ela decidiu viver isolada do resto da família, pode ter sido também por não ter conseguido criar seu filho da maneira que esperava. Ele era um velinho invejoso, brigava sempre com seu vizinho. Certa vez seu vizinho apareceu com uma charrete de 3 cavalos, o Veloster da época, o pai de Chapeuzinho morreu de inveja, ele tinha uma charrete tradicional de 4 cavalos, ficou maravilhado com a genialidade de tirar um cavalo visando status social, provavelmente uma das maiores invenções da sociedade moderna, tudo é melhor quando você não tem, e assim foi.
 Comprou um Veloster e foi se exibir pelos bosques de maior valor por m², fez disso um hábito. Seu vizinho inovou, apareceu algum tempo depois com uma esposa, o que causou reboliço na casa de Chapeuzinho, filha de pai solteiro. Seu pai pegou o Veloster, e foi cavalgando por ai até encontrar uma linda árabe vestida em sua Burqa. Em parte, por culpa do capitalismo, ele nunca descobriu que sua esposa era um caçador operador de telemarketing. A madrasta de Chapeuzinho sofria de alguns transtornos psicológicos e tinha alguns fetiches estranhos para um caçador. Esse caçador gostava de se vestir de iraniana, e sair por ai com seios falsos de meia, daquelas bem marcadas por um dia árduo de trabalho, cheias de desodorante feminino, um fetiche bizarramente comum entre caçadores.
 Chapeuzinho cresceu entre essas pessoas mentalmente incapacitadas, todas bebiam leite e davam leite pra ela. A madrasta tinha uma mente doentia, arquitetou todo um plano maligno para satisfazer outro fetiche seu, o de sair por ai abrindo a barriga de lobos recém alimentados e prestar serviço ao herói, ocupando diversos papéis na própria trama.
 Mandou Chapeuzinho pela estrada afora, sozinha, levar os doces para vovozinha, pagou com leite o lobo do bem, que se tornou o lobo do mal quando aceitou a propina, e ainda ligou para casa da nora, dizendo que receberia visita e mandou-a usar um perfume que havia comprado, um ótimo pra época, essência de carne de coelho sintética. Nem todo mundo podia comprar comida, se você andasse por ai com esse perfume as pessoas corriam atrás de você, pra te lamber é claro.
 Chapeuzinho também adorava tudo aquilo que não podia ter, tudo o que quando teve não pareceu tão bom quanto quando não tinha. Sua avó não gostava dela, e isso sempre foi um problema pra Chapeuzinho, ela queria muito o amor de sua avó, pensou até em parar de beber leite e ir beber água com a avó. O que ela não sabia, era que sua avó foi morar longe não por não gostar de Chapeuzinho, mas sim por ter um romance secreto com o lobo, e esse lobo era pedófilo, pensou até em virar padre por simples proficiência.
 O lobo não sabia de nada do que a madrasta de Chapeuzinho havia planejado, foi a casa da vovozinha engolir ela, e assumir seu lugar pra poder engolir Chapeuzinho também. Ela queria tanto o amor de sua avó, que ignorou os pêlos, dentes, garras e bafo de lobo daquela criatura vestida elegantemente. Foi engolida facilmente.
 O lobo saia da casa da vovó se sentindo um super herói, pronto pra derrubar diversas casas de diversos porquinhos, se não fosse pelo(a) caçador. A madrasta de Chapeuzinho chegou reluzente, voou sobre o lobo com seu machado e partiu ele no meio. Chapeuzinho e sua avó saíram da barriga dele intactas, estavam desesperadas e não sabiam a quem ligar, o caçador sugeriu ligar para o Seguro de Caça. Quando ela terminou de discar, o caçador havia sumido, ficou confuso e olhou para todos os lados, via passarinhos dando tiros, via mosquitos e vagalumes, via de tudo quando alguém atendeu do outro lado da linha. Tinha uma voz familiar.
 -“Madeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeira”
A madrasta de chapeuzinho estava do outro lado da linha, pediu desculpas mas não explicou que uma de suas personalidades havia assumido na hora errada e gritado “madeeee...ira” quando devia ter dito “Seguro de Caça, bom dia, como posso ajudar?” , e foi logo perguntando sobre o que havia acontecido ao pobre lobo, como se não soubesse de nada, conseguia fazer-se de surpreendida com a descrição do acontecido, era natural. Conseguiu, foi o herói duas vezes. Tudo culpa do leite.
 Victor havia ido em uma exposição sobre a cultura do Irã, não tinha dado muita importância até perceber o verdadeiro propósito dos iranianos. Era uma tarde normal, tinha cachorros latindo pra motoboys, tinha crianças gritando freneticamente, ainda era possível saber as horas. Levantou da cama, desceu aquele único andar, feliz, e por mais que o leite o obrigasse, bebeu água. Tinha feito a mesma coisa na semana anterior, só não tinha prestado tanta atenção no leite. Quando saiu de casa naquela semana, passou por uma padaria onde todo mundo comprava pão e leite, algumas pessoas levavam presunto e queijo, pagavam ao caixa vestido com um avental de açougueiro, talvez aquele caixa soubesse de algo, só vendiam presunto então pra que aquele avental?
 Foi de metrô para Marechal Hermes, deveria ter pego para o Flamengo se não tivesse verificado na internet que o prédio da Milk Futuro era mais próximo de Marechal Hermes do que no Flamengo, apesar de ficar no bairro do Flamengo. Pegou o cartão magnético do bolso, e ficou alguns minutos em uma daquelas máquinas que recarregam ele pra você, por dinheiro. A máquina tinha duas entradas, uma onde se colocava o dinheiro e outra onde se colocava o cartão, o problema é que as duas entradas não eram muito visíveis, nem para ele, nem para o pessoal atrás que também não sabia dizer onde diabos ele deveria enfiar aquele cartão magnético, sabiam, só não queriam dizer. Isso mudou quando o pessoal viu o metrô partindo, instantaneamente todo mundo sabia onde diabos ele deveria enfiar aquele cartão, e não era em máquina alguma.
 Foi andando pra longe daquele pessoal hostil, e tentou entrar em um vagão diferente deles. Tinha uma faixa amarela na frente das portas, não adiantaria muito para aquelas pessoas que estavam fazendo sinal de ônibus para o metrô.
Sentou em uma das cadeiras vermelhas, não sabia se elas eram as especiais ou se as verdes eram as especiais, tinha mais verdes do que vermelhas, seria legal se mais pessoas pudessem ser especiais a ponto de ter seu próprio lugar no metrô. Um dia de trabalho e 4 horas de locução deveria ser o requisito pra ser especial e pode escolher seu lugar, sobrariam então 4 cadeiras não especiais pra pessoas ordinárias, ali por pura diversão. Somos todos especiais mesmo.
 Entraram um pouco depois, dois homens de terno e gravata bebendo Nescau de caixinha. Só faltava mesmo alguém correndo dizendo que todos iriam morrer, não foi gravado Premonição X no metrô ainda, pra que negar essa possibilidade? Seria ruim sair de dentro do vagão e ai sim acontecer um acidente, vítima da própria vontade de viver, seria homicídio culposo da pessoa que teve a premonição? Ou só suicídio? É importante saber, principalmente na hora de processar alguém!
 Alguns minutos depois, chegou lá no prédio da Milk Futuro, no Flamengo, soltando na Marechal Hermes que é mais próximo do Flamengo do que o Flamengo. Ficou alguns minutos no saguão enquanto tentava entender porque diabos estava ali, a filosofia de que se dá pra tirar algo de útil de tudo não era o suficiente, mas já era tarde demais. Sentou em um banquinho, que tinha no hall de entrada, colocou o headset e foi ver um vídeo da exposição.